Cenho/Sonho

Este texto foi inspirado pelo meu amigo Nikolas Chacon e Lígia Triumpho que fazem um trabalho audiovisual em seu canal Tela Preta Produções, #procuresaber. Os recursos são feitos na unha, mas que tem um resultado visual impactante, que me agrada muito. A minha ideia foi se comunicar com a arte deles e, por isso, acabei escrevendo só quando estava muito próximo de dormir. Foi diferente e eu agradeço muito o convite. Em breve, tem vídeo (clipe?) aí.

astros e ostras.
toda pérola é um grão
ou todo grão é uma não-pérola
que foi demoradamente devorada
devoradamente demorada
salivada em meio ao oceano.

fato é que o que está no fundo do mar
e no fundo do céu
é difícil de ler.
é escuro e frio,
mas habitam estrelas.

ostracismo contra astrologia.

existe pra cá,
circuitos eletrônicos e de surfistas.
ondas que conquistam a beira da praia
e as que conquistam as beiras
de nossos ouvidos, de nossas vistas.

antes não éramos nem partículas,
crescemos,
hoje somos partidos
e partidas.

o melhor que podemos por quem amamos.
os heróis, sempre nós.

somos feitos de dobras
estranhamente proporcionais,
como se o próprio corpo buscasse
em duas partes tão distintas
se referenciar.

o corpo e a cópia.

mitoses, meiose e mimetismo
meios do mesmo e do abismo
afasia a empatia.

quem veio primeiro?
e quem veio no meio?

poderíamos descansar nos dobrando
e ativar nos desdobrando.
viver pede tais movimentos.

o cais do caos.

a concha
soa como boca
em nossa língua,
cristais.

estamos em uma casa,
não é ela quem nos habita.

assim como
estamos com o todo
e a nossa harmonia
é um pedaço.

fusão do pensamento
e sentimento
a espiral que cabe
ao momento.

é a senha.

memória pode ser, então,
um eco da dor
ou habitar o ar do eco.

lembra aquilo,
mesmo depois que fechamos os olhos,
as imagens ainda se projetam
no escuro de nossas pálpebras.
parece o universo.

ou então,
quando no espaço,
se perde a visão.
na verdade,
é só você e o aço
frente a imensidão,
um sonho.

o inverso.
microcosmo, macrocomputadores,
macroondas, microeconomia
em macroscópios, macrorganismos.

uma tela preta
ou uma tela não-branca
que pende ao infinito.

até um campo aberto
pode ser um labirinto
para quem está imerso
na inércia.

é assim.

toda noite eu rezo
para não me perder
no dia seguinte.

então, eu adormeço
e me perco
no mesmo dia.

Parabéns, filha.

Hoje é dia da Serena, o primeiro aniversário da nossa luzinha.
Agradeço a Deus, a natureza e principalmente a mãe dela por sua saúde e essa volta completa ao sol. Virou o meu mundo de ponta cabeça, me aprumou, me serenou.

Antes mesmo de nascer era só o que eu pensava: saúde, saúde, saúde – e hoje ela mostra isso em suas curvas fofas maravilhosas, nos olhos atentos, aquele dedinho apontando para onde nem se imaginava, nos dentes fortes. Como nota barulhos que só ela, na sua facilidade ao sorriso e em estar com os outros. Na sua força ao empurrar não só a minha cara, mas todos os infinitos cantos da casa. Descobrindo os mecanismos dos mistérios, as formas e as brincadeiras. Desmontando e provando.

Celebro ela no piloto do seu carrinho de bebê. Hoje é ela quem segura um meu mindinho para passear. Celebro o seu equilíbrio-bêbedo e a graça que acha ao espirrar, seus gritos de felicidade, mesmo quando eu decido morder o seu suvaco. A pose de assobiar – mesmo sem som. Celebro o jeito decido dela e sua criatividade. Sua atração pela música e como se pendura no violão, celebro o seu fazer e rabiscar as paredes. Meio água e meio fogo. Celebro quando ela faz cara de fuinha, quando faz som com o nariz repetidamente ou soprando apito, fechando o portão. Amando os pássaros e batendo no Virgulino como quem quer fazer carinho e não sabe. Quando também tenta comer igual ao gato ou mexer na comida dele mesmo. Amo o jeito que o felino olha ela tipo irmão mais velho e isso me faz pensar se eu to maluco. Essa parceiragem é demais. Celebro a inspiração e o riso que dá quando a gente sopra em seu rosto. Celebro a sede dela e como ama beber água – espero que isso se mantenha e que tenha sempre saúde-saúde-saúde. E hoje e cada vez mais autonomia, autonomia e saúde.

É tanto, mas eu celebro muito. Às vezes me pego olhando pra ela e me emociono, sinto um amor gigante. E também um medo enorme.
É impossível não lembrar do seu nascimento, como é um processo difícil e milagroso. Ela é filha da força.

Me vejo nela. Vivo com ela. E isso é uma das coisas mais importantes que existem para mim.
Agradeço infinitamente à mãe dela pela parceria, por tanta dedicação, invenção, por tanto carinho que ela deu e dá sempre. A atenção, o exemplo e como isso pode educá-la para ser uma mulher livre e forte. Livre e forte.
Elas me fazem bem, me dão energia e propósito. Fizeram enxergar a mim mesmo como um exemplo e que eu poderia ser digno. Estou mais firme, centrado e leve.

Nestes últimos dias em que estamos juntos o dia inteiro, me faz pensar que apesar de toda a dor que acontece no mundo afora, estamos bem e é um privilégio imenso estar em sua companhia. Festejaremos com a presença do nosso trio, o power trio, com a benção de nossos protetores de outros planos e de nossos familiares que a amam tanto e vão fazer uma visitinha pela internet.

Serena, minha filha, gratidão e muito axé.

Canções Repetidas

foi em uma queda como essa
de um medo infantil
perdi me do brio
abri me ao breu

não rodei por um tempo
mais que isso
não amei por um tempo
as canções repetidas
não mais repetidas

agora é só a busca
brusca
consegui
e não sei o que

ouço o oco
roeu o moço
a moça
o osso
o sonho
um som
osanha

e lá dentro cabe
um tanto de
luz
um outro de
paz
mas como
faz
pra deixar o que
fiz

Línguas

 

mesmo quando tudo era um sonho
antes mesmo de ser o amor
a gente já se encontrou

então, virada uma vida,
nossas vidas,
o notar do som
foi que me chamou

de dentro da sua bolha
observação e oração
uma esticadinha de vez em quando
e eu já entendia o seu não

aprendi com o seu silêncio
seu choro virou um trovão

e despertou para mim
um verdadeiro sim
e a transformação

uma prosa
cada respiração

aprendi esse idioma
e canto para colocar na cama
e me despertar disso
um susto, um doce, um riso

a gente se fala
mesmo sendo em gesto e tato
foram grandes revelações
no sofá da sala

o seu rosto só expressa
o meu lado bom
e quando você fez um ruído
babado, primitivo grito
silvos, silvas e almeidas

eu descobri que a maravilha
pode ser imitação
toda criação
poesia, faísca e pavio

do mais delicado ouvir
no mais largado, sorrio
são duas antenas
e há dois segundos

o meu e o seu

assemelho
somos espelhos diferentes
colocados frente a frente:
um reflexo do infinito

tudo diz
o encanto do assobio
o saudação do índio
os conselhos joelhos
as brincadeiras britadeiras

sua boca revela o mundo
descobertas das mais simples
às mais abertas
são sensações-janelas

nessa fase
sua língua fica de fora
não falamos a mesma ainda
mas, ah, como a gente se fala.

 

 

Só Alegoria

que tolice
ser tão orgulhoso de minhas cicatrizes
alguns amores beiraram as obsessões

alguns, distrações
encantadoras fantasias
transformam em maravilhas
um carnaval de um quarto
alforria em um morro
onde não falamos a língua

ali eu decidi destruir tudo
foi minha ruína
meus ruídos
entre seus braços
e conselhos
o choro
o treme terra
o inevitável espelho

um estreito corredor
que atravessa uma nação

se pudesse faria um desfile
na frente da sua casa
com cartas não mandadas
e meus fracassos todos
devidamente enviados
ávidos e óbvios

Crisântemos

parto de uma ponte
de onde a luz parte

um legado de sorte
ser forte para recordar
o respeito ao que vem

entro até onde o fôlego alcança
contemplo o que me lança

um crisântemo
antemão
frente ao não
é todo sim

atento a ouvir
de onde vem todo som
fino caule
sustenta pesada flor

parte do fim
todo começo
antes do berro
vem o berço
arco íris de amor

convite feliz
uma oportunidade
ao perdão

Canal

se você olhar fundo
vai ver o que reluz
e antecede o trem
mas ele não vem

na verdade sempre chega
também faz parte:
você não mudou nada
e seu couro o cega

foi o reflexo do trilho,
sua cura que segue
ou foi o mundo
que virou viagem?

se você mirar fundo
no túnel, pode enxergar
ou alcançar o nada
nem toda luz lhe cabe

só a imagem

gire fundo na vida
e vai ver o desencontro
da expectativa e da tentativa
que é dentro, que é outro

esvai o retrato
da cara minha
um resto de contrato
já sem partida

ou passagem

um cabo elétrico
para o verdadeiro elo
se você cair aqui
só pode virar raio

vire para o fundo da linha
e vai debruçar sobre o intervalo
entre o que se realiza
e o que sai pelo ralo

um recomeço

pare ao puro entrelaço
o que inspiro e o que eu faço
não é mero acaso
mas é esmera coisa

é agudo ou é resguardo

amar o caos
cavar o mal
beber o bem
meu canavial

Celebro nossas vidas

sempre que nasce uma mãe
nasce uma árvore
e 3 pássaros

o fruto se deleita
a arte se espreita
mas nunca acaba

escapa
avoa
garoa

a gente não sabe
onde vai ou como
mas não perde os passos

uma gigante pequena
passa lentamente
como um guia astral

em nossa colheita
viramos lobos, preguiças,
samambaias-capivaras

o instinto se arrasta
e as raças misturam
entre a flora e a fauna

sonhar não pasta
a gente se invoca
com carinho ao ninho

em uma diversão matinal
nosso curto sarau
de todo dia

temos um parque
para cada canto da casa
o vale é na sala
a beira de rio é o quintal

(e imagina a copa)

as roupas no varal
parecem velhos amigos
nós em espírito
entregues ao sol

balançando

Parabéns mais uma vez pelas nossas vidas, Thata.

Adornas

não foi só por sonhar com o voo
não foi só uma imitação
arvorou um grito contente
era a altura que a chamava

e ela sempre começa no chão

a invenção
atende a descansada urgência
em descobrir seus caminhos
em superar os móveis,
os cômodos e incômodos

plainar só existe agora
em que estamos cheios de tudo

e todos,
todos caem
só se ergue quem vai
e você também é fruto

a primeira lei é o amor
a segunda é a gravidade
a terceira é o balanço

tudo tem sua escala
e escalada
um brilho e raridade

posso ver as cores
em seu rosto, sua alteza

não há uma só linha reta na natureza
os seus traços são só adornos
altos e baixos
espirais e reflexivos
expansivos e imersivos
resistimos e florescemos

respira
que o ar ensina
sinto que você tenha tão cedo
conhecer as dores verticais
só homens inventariam quinas

Transcontinental

seu nome esconde uma guerra
enquanto seus olhos declaram paz
me derruba ao contrário
no que me desfaz

sua língua faz as minhas placas tectônicas
dançarem como tartarugas
explodir o teto do que é concreto

e então tudo vira fogo e lava
que lava
e atenta contra as sociedades pacíficas
que nos margeiam

os montes aos montes

não somos ilhas paradisíacas
navegamos bem lentamente
rumo ao desconhecido
e já não podemos parar

nau somos

correntes marítimas
despistam viajantes
e libertam a vida de antes
peixes-espada, seres de nada e outros gigantes
que nos baleiam.

são ventanias que fazem chover
em algum lugar do mundo
e chegaram aqui como ondas tsunâmicas
trombas d’água nas cachoeiras
que fazem sumir com os turistas
e afogam as terras à vista

para acordar em plena vida
neste plano caótico
novamente

um ovo de uma espécie nova
no agora
e no sempre

o doce lar
vira o viver no veneno
que faz arder em febre
e sonhar com o eterno

não existe o silêncio
só o som distante
que ainda não podemos perceber