Parabéns, filha.

Hoje é dia da Serena, o primeiro aniversário da nossa luzinha.
Agradeço a Deus, a natureza e principalmente a mãe dela por sua saúde e essa volta completa ao sol. Virou o meu mundo de ponta cabeça, me aprumou, me serenou.

Antes mesmo de nascer era só o que eu pensava: saúde, saúde, saúde – e hoje ela mostra isso em suas curvas fofas maravilhosas, nos olhos atentos, aquele dedinho apontando para onde nem se imaginava, nos dentes fortes. Como nota barulhos que só ela, na sua facilidade ao sorriso e em estar com os outros. Na sua força ao empurrar não só a minha cara, mas todos os infinitos cantos da casa. Descobrindo os mecanismos dos mistérios, as formas e as brincadeiras. Desmontando e provando.

Celebro ela no piloto do seu carrinho de bebê. Hoje é ela quem segura um meu mindinho para passear. Celebro o seu equilíbrio-bêbedo e a graça que acha ao espirrar, seus gritos de felicidade, mesmo quando eu decido morder o seu suvaco. A pose de assobiar – mesmo sem som. Celebro o jeito decido dela e sua criatividade. Sua atração pela música e como se pendura no violão, celebro o seu fazer e rabiscar as paredes. Meio água e meio fogo. Celebro quando ela faz cara de fuinha, quando faz som com o nariz repetidamente ou soprando apito, fechando o portão. Amando os pássaros e batendo no Virgulino como quem quer fazer carinho e não sabe. Quando também tenta comer igual ao gato ou mexer na comida dele mesmo. Amo o jeito que o felino olha ela tipo irmão mais velho e isso me faz pensar se eu to maluco. Essa parceiragem é demais. Celebro a inspiração e o riso que dá quando a gente sopra em seu rosto. Celebro a sede dela e como ama beber água – espero que isso se mantenha e que tenha sempre saúde-saúde-saúde. E hoje e cada vez mais autonomia, autonomia e saúde.

É tanto, mas eu celebro muito. Às vezes me pego olhando pra ela e me emociono, sinto um amor gigante. E também um medo enorme.
É impossível não lembrar do seu nascimento, como é um processo difícil e milagroso. Ela é filha da força.

Me vejo nela. Vivo com ela. E isso é uma das coisas mais importantes que existem para mim.
Agradeço infinitamente à mãe dela pela parceria, por tanta dedicação, invenção, por tanto carinho que ela deu e dá sempre. A atenção, o exemplo e como isso pode educá-la para ser uma mulher livre e forte. Livre e forte.
Elas me fazem bem, me dão energia e propósito. Fizeram enxergar a mim mesmo como um exemplo e que eu poderia ser digno. Estou mais firme, centrado e leve.

Nestes últimos dias em que estamos juntos o dia inteiro, me faz pensar que apesar de toda a dor que acontece no mundo afora, estamos bem e é um privilégio imenso estar em sua companhia. Festejaremos com a presença do nosso trio, o power trio, com a benção de nossos protetores de outros planos e de nossos familiares que a amam tanto e vão fazer uma visitinha pela internet.

Serena, minha filha, gratidão e muito axé.

Descasa.

Primeiro, ficou vazia. Já não tinha vida, só a poeira poderia falar sobre o tempo que se passou. Sem visitas, sem cheiros.
Ela foi desfazendo aos poucos. A cortina caiu, a beleza da janela também. Embaçou-se sem motivos. De tudo o que nela habitava, não havia sobrado nem a curiosidade. Paisagem pareceu que nunca havia existido. Aonde havia tantos sonhos e bem estar, agora havia somente a sala. Aquele estar, imensamente duro.
Era o fim dos abajures, das poltronas, dos colchões. Dos banhos. E a morte só deseja morrer.

Havia passado.
Quantas manhãs de agonia, quanta expectativa, quantas noites em claro. Esperando ela entrar pela porta e dizer que está tudo bem. Mas tudo falta. Continuava toda fechada.
Tinha ficado tudo bem mal. Bem tombado. O ar tinha ficado cru, ela não havia nem escolhido a cor da pia.
Agora sua existência estava em cada escombro. Sujo. Derrotado, sim. Tão pequenos e deslocados que davam vergonha só de imaginar que ali era o seu lugar. E era.

O próprio abandono foi demolindo a casa.

Erosão. Era uma visão evitada no meio daquela rua. Que nem tinha nada de especial.
O patrimônio escondido em cada tijolo, o carinho e a força da obra, já não tinham valor. Era a herança da dor – com uma cidade tão grande, como podia haver tanta dela ali? O peso do telhado se tornou insustentável, já não se considerava coisa, era destroço.
Não sairia dalí, sabia. Estava quase completamente devastada, só haviam deixado para trás o suficiente para torná-la feia. Nem um só sorriso verdadeiro passou por lá desde então. Logo lá.

O endereço se perdeu no meio-fio.
Até a garganta se tornar um terreno baldio, a pele virar rachadura, até a sua coluna cair. Mais um lar havia virado descaso. Era o seu descasamento.

Fecha Dura.

Começou uma coleção de chaves perdidas. As primeiras foram um acaso, tiradas do meio-fio. Sem querer, sem desquerer, pra distrair, levar a vida. As seguintes estavam em um chaveiro, eram 4, com detalhes absurdos e elegantes como qualquer outro.

Eram necessárias, certo? Serviam para abrir, não é?

Uns dias andava de cabeça baixa, só para não perder nada. Eram mais de 10. As carregava em sua mochila, gostava do barulho, e as organizava por tamanho, cores, número de curvinhas.
De uma semana para a outra, não havia um momento em que não passasse vazio de chaves. Seu caminho, grama a grama, lhe pesava e sustentava. 41.

Estava cheio de buscas. Preso do lado de cá.

Quanto mais estranhas, melhor.

Tinha das antigas, bonitas, grandes, ornamentadas, sujas, de carro, brilhantes, roubava-as algumas vezes dos amigos. Amava o metal delas passando pelos dedos. Perdia de propósito as dos pais para depois encontrar.
Estava certo de que não havia mais nenhuma no seu bairro. Não havia perdão. Procurou nos ônibus, olhou embaixo dos bancos. Só queria caminhar mais. Ia cada vez mais longe, até perceber que não reconhecia a região. Não reconhecia maçanetas enquanto os molhos o divertiam e irritavam e deixavam louco. Elas haviam passado as 200.

Quanto mais, melhor. Talvez houvesse um encaixe.

O chaveiro o estranhou quando começou a aparecer atrás das sobras, das com defeito. Olhou o garoto torto, mas não havia nada a ser visto. Algo não tinha. Parecia um cão calado. Que não fugia da chuva. Alimentava-se do amargo do estômago faziam meses. Não saberia contar, havia números mais importantes que não poderia perder. Tinha varado noites sem fim tentando não perder a cabeça, mas tentando deixar as chaves no lugar. Ele estava cercado por todos os lados.

Havia fechado o tempo. Havia fechado o sinal. Havia fechado a janela. Ela havia fechado a cara. Ele havia fechado os olhos. Os dedos. A rua. Havia fechado-o a ferida. A conta. O expediente.
Ele estava trancado.

Rei de nada.

Esqueça tudo.
O mundo fica nebuloso em plena tarde quente.
Tem o olhar gentil para o seu pequeno reino reerguido, enquanto as quedas lhe perseguem.

Elas, antes bem guardadas, já não cabem no armário. Transbordam o colchão da cama. A lavanderia já nem visita mais. Presos nos tecidos, nos panos aos prantos.
Nem seu bondoso trono está livre e navega naquele mar de chão.

Os seus olhos buscam sinal mais do que o celular. Ardem por dentro.
Ele está fora do alcance.

O outro lado da rua parece a margem de um rio.
“A árvore seca de madrugada parece comigo”, não dorme e não se alimenta.
Veste a noite como ela o veste e suga toda luz ao redor.

A dor é real. Carne e osso, sangue e poço. O fim do posso.
Tinha ficado duro, ninguém mais via seu dente de ouro.

Ele nunca mais seria o mesmo.

Os seus breves relatos de loucura crescem às pilhas.
Memórias mal contadas, imagens fragmentadas e versos desérticos agora eram o seu teto. Esperava o primeiro ônibus que passasse, mas não passava.

Havia sido uma cruzada por um tabuleiro gigantesco, sua vontade era um peão e ela, rainha.

“O sol sempre aparece.” – diz a si mesmo, sentado no ponto.
“Ah, a noite também.”

Avoa. Aqui.

O amanhecer ou a madrugada anterior. As verdades que puxavam o outro lado da linha como quem ergue uma pipa. O ritmo dos carros e dos batimentos cardíacos e de tudo mais. O alívio do momento que parecia um feriado, até mesmo a ângustia que já havia feito o maior trânsito por ali.

Todas as coisas falavam a mesma mensagem.

As mesmas músicas no pé do ouvido. Que carinhosamente colocavam o destino em segurança, na sua própria levada. Com uma harmonia tão boa.
As mesmas gentilezas, a mesma bondade. O ano mais bonito da sua vida. A promessa de que seríamos afobados em nossos peitos pelo destreino da culpa, pela auto-conspiração de felicidade, pela vaselina na mente.

Não eram coincidências, eram um acordo. Silencioso, gracioso, que sempre tinha um espaço na bagunça da bagagem.
(As palavras já tinham feito peso extra)

Sabe, não existe distância real se as suas viagens íntimas te levam sempre para o mesmo lugar.
E ninguém cala na alma a importância do nosso lar. Ele sempre vai estar.

Ali na varanda dos pensamentos, dos desejos voadores, dos aromas secretos. Naquele vento charmoso das discussões tolas, das mãos que se dão como que se abraçam e dos sabores perdidos, estavam as saudades mais particulares.

“Se as pedras soubessem. Como é duro ser eu.”

Vinha o homem triste, de cima da bota, caminhando. Meio frágil, meio que não. Meio cansado, meio doente.
Não era a falta de grana, nem a hora que saiu do trabalho. Eram os problemas que ele mesmo teve que corrigir.
A sacola branca com a coxinha e o pão de queijo. Pequena. Era o boteco agradável e amarelado. Era tanto e não era nada disso.
Era aquela falta, que passou o dia inteiro tentando suprir. Era nada.
Sentia como aquilo tudo era insignificante. E tão avesso. Tão parte do seu medo. E lhe deixavam assim.
Não que lhe faltasse valor – ele realmente acreditava nisso, sentia-, mas faltava importância. Para qualquer um, a não ser ele.

Vinha como quem se sentia ridículo. Não sabia decidir como estava o clima.

Estava enferrujado.

Não havia beleza em nada.

“Estafa.
Parecia que eu estava afogando em mim.”

Acabou o efeito.

Vida caminha, em um surto de realidade. Viva a inconstante e inesgotável areia! Lúcida e interna, me faz sair pra esticar as pernas. Conscientemente pleno, jogo óleo nos eixos, remexo nos azulejos e volto a decorar a casa.

Vida, sua bandida, não me roube a vista, senão eu roubo a sua preguiça.

Segue ela alta e poderosa, como leoa formosa, em beleza de rainha. Ô, vida minha, te quero com liberdade, pra sentir você o quanto puder, abandonar quando quiser ou quando tudo fizer sentido.

Até logo logo, não repare os meus modos, preciso passear. Mande um abraço a todos amigos e um beijo de felicidade.

Ssshhh

Me leva como correnteza, com uma beleza que explica os sentidos.
Que não me afoga, mas confunde e conduz, gela o corpo, bate o frio na barriga. Um ciclo que eu não sei onde começa, mas não quero que termine.
Leva até o alto do conflito do filme. Que sustenta até o próximo capítulo. Que está próximo. E refresca a cuca.

Entende de pronto, que esse é meu lugar agora. E não há verdade ou harmonia lá fora que vá me fazer mais feliz. Sinto por completo. Como se acabasse logo, e ainda. Como se não acabasse nunca.
Me arrasa com pureza, sem conhecimento, como se fosse dona do mundo.
Te desejo com a irresistibilidade da piscina em meio a essa caloreira. Que dá todo dia ao acender dos olhos de manhã.
Corro e me jogo, porque não há motivo algum para não mergulhar em você e lá permanecer. Como se fosse possível respirar tudo. E viver de verdade nesta tarde.

Faço todo o possível. Por dez minutos de calmaria.

Toda sobra de essência que não escorre. Que os metais e cimento e horários não levam, eu dedico a isso. O inquestionável momento. Que enche até a borda de felicidade.
Me entorta o olhar, não conseguir ir mais um pouco, ver a profundeza toda. E parte por parte de mim, bem pequenamente, se envolve e se envolve, até despertar o desejo de pendurar em meu próprio peito aquela concha do mar.
Ou a coisa que não sei como chama. Mas que não apaga nem um momento.
Isso me transparece.

Me deixa mole, instável feito um verão. Passeio. Fico alegre como qualquer feriado. Acordo, claro, cedo, forte, ando descalço pela casa, porque isso me recorda o lar que nós somos.
Acordar ao seu lado, abrir os olhos devagar, é um carinho, parece garoa.

Mas hoje não.
Só de ver as pessoas na rua já sinto saudade.
Qualquer carinho por aí me cutuca. Sinto inveja, coisa de velha. Me deixa sem graça, com cara de bronco. Maltrato os bancos da praça. Forço para recordar.

Aquele céu quase todo azul que conspira. Com gentileza.
Para que eu possa admirar você esperar a cor que lhe pinta e eu adoro chegar.
Lúcida. Aquela leveza que é só sua e insiste. Que nada em tudo.

E faz chover o meu carinho.

Ventos lhe sopravam de todos os lados, nortes e de baixo e do outro lado. Dançavam por dentro os desejos e ansiedades de tudo. Cata-ventos dos olhos. A gloriosa aura dos livres. A aurora leve dos livros. Em seu peito batiam centenas e madrugadas e triunfos e tampas abertas de garrafas.
Crua e leviana, a boca do estômago a dar risadas, as plantas dos pés florindo e ganhando asas.

Br(eu)

Quando olho no espelho, me encontro em dois: um que vejo e outro que me vê. Um com essência, bondade, invenção, grandeza; outro com ausência, trapaça e desconhecida dureza. 

Mas se completam no limite das percepções.

 

Um é guia, o outro é alvo. Nenhum deles verdadeiro, nenhum de mim absoluto. O equilíbrio do vão com o tudo. Florearam os cristais dos olhos pra traçar meu rosto, entender meu ponto de partida, para definir qual será a minha próxima resposta.

 

Quando abaixo a cabeça, me vejo em vários. Sombras que não saem do meu pé e sabem como crescer mais do que eu. Pedaços meus de escuridão. Algumas são tão fracas que quase não estão, outras vão tão longe, passam até da miopia que limita o horizonte da clareza.

Elas se escondem por trás dos entendimentos, até dos sentidos. São o pior tipo de vilão: os que estão próximo demais. As mais baixas vilãs.   

Sem juízes justos, mas também sem culpa.

São imprecisamente eu.

 

E a tantos todos me entrego, por completo, para a balança entre o que eu quero ser e o que indesejadamente sou. Com embaraço, um pouco de vergonha e um tanto de uma paz revolucionária, finalmente, entendo…

 

No eu, há o breu e há o céu.